domingo, 3 de outubro de 2010

Meias de Seda - Kate Chopin

Sinopse

Escritas com humor e uma aguda percepção da psicologia feminina, as presentes histórias revelam-nos uma importante escritora norte-americana, Kate Chopin, cuja obra mais relevante e controversa é o romance "Despertar". Ultrapassando muitas das convenções do século XIX, Kate Chopin consegue pôr em causa a submissão a que as mulheres, nessa época, estavam sujeitas.

A minha opinião

Kate Chopin (1850 – 1904) é considerada a precursora do feminismo. Na sua curta obra, a mulher e o seu universo são uma presença constante. Muitas das suas histórias são passadas no Louisiana e reflectem as suas paisagens, o famoso rio Mississípi, as suas gentes, a sua cultura.
Este livro é constituído por 9 contos. Confesso que não gostei igualmente de todos eles. Mas gostei da escrita simples e directa de Kate Chopin que, sem grandes descrições, nos consegue transmitir a mensagem. Em boa parte dos contos, as mulheres, que, no final do século XIX, deveriam ser submissas aos homens, mostram-se já emancipadas. Penso que o livro retrata bem a sociedade da altura, os hábitos, as formas de pensar, os bailes e a vida social, o racismo e a vida dos escravos e dos senhores da terra. Gostei da inocência e simplicidade de algumas personagens.
É um livro leve em peso, mas que não é de leitura assim tão leve. Faz-nos pensar em quão diferente era o estatuto da mulher.
Fiquei com vontade de ler a obra mais conhecida da autora, O Despertar, geralmente associada a Madame Bovary, de Flaubert.

sábado, 2 de outubro de 2010

Os gémeos de Black Hill – Bruce Chatwin

Sinopse

Este romance (adaptado ao cinema em 1987) narra a história de dois irmãos, Lewis e Benjamin Jones, que vivem isolados numa quinta chamada «a Visão», nas terras altas do País de Gales.
Liga-os um laço especialmente forte. Apesar da compleição idêntica, Lewis torna-se o mais forte, o gémeo-dominante, com uma personalidade mais masculina. Enquanto Benjamin é mais feminino, intuitivo e mais ligado à mãe, enquanto esta é viva. E possivelmente ama o irmão gémeo com um amor mais do que fraterno.
“Os Gémeos de Blackhill” é também um romance sobre o amor não correspondido, a confusão sexual, e a repressão social, cultural e religiosa.


O autor

Bruce Chatwin (1940-1989) é um dos mais aclamados escritores de literatura de viagens de sempre. Foi jornalista da Sunday Times Magazine durante vários anos, e a carta de demissão que mandou ao seu superior ficou célebre – nela lia-se simplesmente: «Fui para a Patagónia». O seu livro mais celebre é, justamente, Na Patagónia, um clássico da literatura contemporânea, que, segundo The Guardian, «conferiu novos contornos à literatura de viagens».
A sua carreira literária foi curta (mais longa terá sido a de viajante), mas de raro brilho. O conjunto dos seus livros – muito premiados e várias adaptados ao cinema – está agora disponível na Quetzal.

Críticas de imprensa

«Quase todos os escritores ingleses da minha geração desejaram ter escrito os livros que ele escreveu.»
Andrew Harvey, The New York Times

«Uma prosa sintética e lapidar que consegue comprimir mundos dentro de páginas.»
John Updike

A minha opinião

Excelente romance. Começou por me fascinar o autor, um espírito incomum que segundo dizem trouxe algo de diferente à literatura de viagens em que a sua obra “Na Patagónia” é prova disso, livro que fica na minha lista de futuras aquisições.
Gostei de todo o enredo criado e gostei sobretudo da escrita fluída, emotiva e quente do autor. Conta a história de dois gémeos verdadeiros, Lewis e Benjamin Jones que vivem numa quinta afastada com o nome de “a Visão”. O autor começa a narrativa um pouco mais cedo, ou seja, antes do nascimento dos gémeos permitindo ao leitor ter uma perspectiva mais geral e alargada da época e transformações ocorridas entre as diferentes gerações. Retrato das dificulades vividas e a dureza dos Invernos, o romance é sobretudo centralizado nos dois gémeos e nas diferenças que existem na identidade sexual de cada um.
Toca a profunda ligação que existe entre os dois, histórias que sempre ouvimos e nos fascinam quando nos dizem que um gémeo pode sentir o que o outro está a sentir.
É de facto, um romance de uma sensibilidade maravilhosa, mas também uma história de dor e desespero pelas vidas vividas. Uma grande obra, assim o entendo.


A vida em surdina – David Lodge

Sinopse

Quando decide pedir a reforma antecipada, o professor universitário Desmond Bates nunca pensou vir a sentir saudades da azáfama das aulas. A verdade é que a monotonia do dia-a-dia não o satisfaz. Para tal contribui também o facto de a carreira da sua mulher, Winifred, ir de vento em popa, reduzindo o papel de Desmond ao de mero acompanhante e dono de casa. Mas o que o aborrece verdadeiramente é a sua crescente perda de audição, fonte constante de atrito doméstico e constrangimento social. Desmond apercebe-se de que, na imaginação das pessoas, a surdez é cómica, enquanto a cegueira é trágica, mas para o surdo é tudo menos uma brincadeira. Contudo, vai ser a sua surdez que o levará a envolver-se, inadvertidamente, com uma jovem cujo comportamento imprevisível e irresponsável ameaça desestabilizar por completo a sua vida.

O autor

David Lodge nasceu em Londres em 1935. Estudou Literatura Inglesa, de que foi professor na Universidade de Birmingham entre 1960 e 1987, altura em que se retirou do ensino para se dedicar inteiramente à escrita. Actualmente continua a viver em Birmingham.
Entre os romances de sua autoria incluem-se "Notícias do Paraíso" e "Terapia", também publicados pela Gradiva. Além de ter escrito romances, David Lodge foi autor de várias obras importantes de ensaio na área da literatura, sendo ainda autor de séries de televisão, entre as quais da adaptação de "Um Almoço Nunca é de Graça", que ganhou o prémio para a Melhor Série de Televisão de 1989 da Royal Television Society.

Críticas de imprensa

Um dos melhores romances do ano segundo a revista Lire. Finalista do Commonwealth Writers’ Prize 2009.

A minha opinião

O romance de David Lodge conta a história de um professor universitário reformado (Desmond Bates) que se debate com problemas de solidão. Como preencher os tempos desocupados, a falta de energia para levar em frente projectos adiados, a percepção de que ficaram para trás ideias e vontades sonhadas e a agravante de uma vida encerrada em silêncios provocada pela surdez precoce.
Um romance extraordinariamente bem construído que apela a pensar sobre a deficiência da surdez, as dificuldades, o afastamento e o isolamento que quem enfrenta este problema.
Desmond Bates sente que a sua vida pode ganhar um novo vigor a partir do momento em que existe a possibilidade de ajudar Alex Loom, uma bonita estudante, na sua tese de graduação. A introdução desta personagem feminina trouxe ao romance um cariz mais inquietante e fiquei com alguma pena que não tenha sido mais explorado, no entanto, e tendo em conta que a base do romance acenta na família e nas suas múltiplas facetas e relações, bem como os problemas e implicações que a surdez provoca, leva a concluir uma fantástica visão da vida.
Ressalto a extraordinária personagem do pai de Desmond Bates que provoca situações hilariantes, descontrai a leitura e me leva a apontar como minha favorita.

Há uma parte do romance em que é feita referência ao campo de concentração de Auschwitz e de Birkenau aquando de uma visita de Desmond ao mesmo. Nunca é demais fazermos referência às atrocidades cometidas e talvez aqui esteja muito do autor e das experiências vividas, sem dúvida um inferno obrigatório de visitar.
“Apesar de termos tido vários desentendimentos sem importância na nossa vida, vejo agora que não soubemos dar valor ao tempo de que dispunhamos.” Relato feito por uma das vítimas de Auschwitz que deixa escrita e enterrada uma carta à sua mulher.

Como conclusão posso dizer que é um livro que nos fala da vida e da família, das relações e dos valores. É também um livro de despedida, um hino ao caminho que percorremos que culmina com a morte e a tristeza da fragilidade do laço que nos liga à vida e, sobretudo a facilidade com que as marcas que deixamos na terra são apagadas.

“Para mim, a maneira como as pessoas tratam os livros é uma mostra do seu comportamento cívico” Desmond Bates

domingo, 26 de setembro de 2010

Daphne - Justine Picardie

Sinopse

Estamos em 1957. A escritora Daphne du Maurier, no auge da carreira e da fama, desespera face ao colapso do seu casamento. Vagueando sem descanso por Menabilly, a sua adorada casa junto ao mar, na Cornualha, é assombrada pelo remorso e pelas personagens dos seus livros, nomeadamente Rebecca, a heroína do mais famoso dos seus romances. Ao procurar alguma coisa que a distraia dos seus problemas, Daphne interessa-se apaixonadamente por Branwell, o infeliz irmão das irmãs Brontë, e inicia uma troca de correspondência com o enigmático Alex Symington, procurando elementos para uma biografia de Branwell. Mas, por detrás da respeitável figura de Symington está um carácter escorregadio com muito para esconder, e depressa a verdade e a ficção se tornam impossíveis de distinguir.
Em Londres, na actualidade, uma jovem mulher solitária, recentemente casada depois de um breve namoro com um homem consideravelmente mais velho do que ela, trabalha para acabar uma tese de doutoramento sobre Daphne du Maurier e as Brontë. O marido, ainda aparentemente envolvido com a brilhante e carismática ex-mulher, mostra-se a maior parte do tempo distante e misterioso e ela não consegue sentir-se em casa na enorme e imponente mansão de Hamstead, curiosamente situada em frente da casa onde Daphne viveu em criança. Refugiada no conforto da sua biblioteca, mergulha num mistério literário com mais de cinquenta anos.

A minha opinião

Devo começar por dizer que o motivo que me levou a ler este livro foi o facto de ter lido Rebecca e ter ficado fascinada com a história e com a escrita.
Apesar deste livro ter contornos de uma biografia - a de Daphne du Maurier - não o é. A acção desenrola-se apenas entre os anos 1957 e 1960, embora a autora recorra a muitas situações, desde a época em que Daphne era uma criança, para explicar os acontecimentos do momento.
Gostei bastante do livro, mas reconheço que a opinião não será geral. Acho que é uma obra destinada apenas a fãs da du Maurier e, de preferência, que tenham lido também obras das irmãs Brönte, como A paixão de Jane Eyre (que já li) e O monte dos vendavais (que, lamentavelmente, ainda tenho na pilha de livros para ler). Acontece que, ao longo deste livro, as situações são constantemente comparadas com as dos três livros que referi.
Acompanhamos três vidas diferentes: a de Daphne, a de Alex Symington (com quem Daphne passou a corresponder-se) e a de uma narradora, na actualidade, de quem nunca sabemos o nome (tal como a narradora de Rebecca).
Aliás, em todo o livro, encontramos tópicos que nos remetem para Rebecca, dada a semelhança.
Daphne surge como uma mulher misteriosa, que aparentemente mistura a sua realidade com a das personagens dos seus livros. Sente-se perseguida pelo passado, pelos mortos e vive uma situação de crise matrimonial.
A seguinte transcrição revela bem este espírito atormentado de Daphne.
O fantasma de Rebecca, porém, nunca partia; estava sempre ali, a suspirar ao ouvido dela ou a bater com os dedos na janela do pavilhão, e parecia trazer outros consigo, presenças anónimas, causas perdidas, casos impossíveis.
«Vai-te embora», dizia Daphne, a tentar escrever, a tentar abafar o tamborilar dos dedos de Rebecca no vidro com o bater dos seus próprios dedos nas teclas da máquina de escrever. «Deixa-me em paz.»
Mas Rebecca limitava-se a rir. «Deixar-te em paz?», sussurrava. «Mas isso seria deixar-me a mim mesma.»
Para fugir a esta crise, começa a fazer pesquisas para a sua obra The Infernal World of Branwell Brönte, que viria a ser editada em 1960.
Branwell Brönte era irmão de Charlotte, Emily e Anne. Daphne acreditava que ele era o autor de manuscritos que, mais tarde, foram falsificados com a assinatura das irmãs, mais conhecidas, com a intenção de serem vendidos por bom dinheiro.
Assim, começa uma troca de cartas com Alex Symington, um homem arruinado, de carácter duvidoso, que partilha com ela o interesse na obra de Branwell Brontë, também este um falhado.
No momento presente, a narradora não identificada, perturbada por um mau casamento e pela ligação do marido à ex-mulher, tem verdadeira obssessão por Daphne du Maurier e sente que a vida desta contém as pistas para a ajudar a perceber a sua própria existência. Ela vê a sua vida como uma espécie de eco de Rebecca, encarando a ex-mulher do marido como a personagem principal daquele romance e ela própria como a jovem mulher inocente que casou com Mr. de Winter.
Neste livro, cercado de mistério, encontramos uma história de fracassos, quanto a mim, muito bem tecida pela autora, ainda que, por vezes, demasiado pormenorizada, tornando a leitura maçuda.
Mas foi uma leitura envolvente, que me deixou com vontade de explorar mais o mundo misterioso e obscuro de Daphne du Maurier.

domingo, 19 de setembro de 2010

Julie & Julia - Julie Powell

Sinopse

À beira dos trinta, encurralada num desinteressante trabalho como secretária sem fim à vista e num minúsculo apartamento, Julie Powell resolve recuperar a sua vida, perdida num quotidiano monótono, através da culinária. Ao longo de um ano, experimenta cada uma das 524 receitas da lendária Julia Child. Gradualmente passando dos Oeufs en Cocotte ao Bistek Sauté au Beurre, começa a perceber que aquele projecto (acompanhado por blog) está a mudar a sua vida. A sua recompensa é não só um recém-adquirido respeito por fígado de porco e mioleira de vaca, mas uma vida inteiramente nova - e vivida com estilo e muito gosto.

A minha opinião

Vi recentemente o filme Julie & Julia e adorei. Achei-o verdadeiramente inspirador e gostei de ambas as Julias. Procurei, então, no livro, no qual se baseou o filme, uma espécie de prolongamento desse prazer, mas, infelizmente, não encontrei.
O livro foge muito à temática do filme e incide demais na vida privada da autora e, sobretudo, do seu ambiente de trabalho.
Se não fosse por querer saber mais sobre as receitas e tudo aquilo que estivesse com elas relacionado, eu teria colocado este livro de lado definitivamente logo nas primeiras páginas. Contudo, nem mesmo a história que procurava eu encontrei. Julia Child é pouco “explorada”. As receitas também.
Porém, nem tudo é negativo. Diverti-me com algumas cenas de família e com alguns pensamentos da Julie Powell. E é por isso que, apesar de ter visto as minhas expectativas goradas, acabei por achar o livro de agradável leitura, pese embora algumas partes perfeitamente desnecessárias.

Era uma vez um rapaz - Nick Hornby

Sinopse

Will Freeman, de 36 anos de idade, não quer ter filhos e não percebe porque é que toda a gente lhos recomenda com tanto entusiasmo. Vive num confortável e moderno apartamento, livre de Legos e cheio de CD's, em Islington. Will tem todo o seu tempo livre, graças aos royalties que recebe, anualmente, por uma pirosa canção de Natal que o seu pai escreveu em 1938. O nosso herói compreende, porém, o ponto de vista das mães sozinhas, especialmente quando elas se parecem com Julie Christie. Assim, acaba por se envolver com um grupo de pais sozinhos e inventar um filho de dois anos, cujas ausências requerem constantes explicações.
Entra em cena Marcus, cujos pais se separaram; as lágrimas da sua mãe sobre os flocos do pequeno-almoço começam a tornar-se assustadoras. Os progressos de Marcus, na sua nova escola de Londres, são ameaçados pelas suas roupas desapropriadas, pelo seu horrível corte de cabelo e pela sua preferência herdada pela música de Joni Mitchell. Uma vez que as circunstâncias puseram Will no seu caminho e uma vez que este sabe, pelo menos, como é que os miúdos se devem vestir e que o Kurt Cobain não jogava no Manchester United, porque é que Marcus não há-de servir-se dele, tanto quanto possível?

Neste segundo romance, Nick Hornby explora as relações que as pessoas estabelecem entre si, neste mundo em que o chamado modelo ideal de família pura e simplesmente já não se aplica.


A minha opinião

Esta é a história de Will, para quem a única razão de ter filhos é para que eles olhem pelos pais quando forem velhos, inúteis e tesos. Pressionado constantemente para constituir família, detesta as crianças, assim como todos os que as trouxeram ao mundo.
Will nunca vivera dramas na sua vida. Gostava de noites bem passadas, amigos de circunstância e não tinha necessidade de mudar.
É então que começa a ver em jovens mães separadas, tristes e sós, possíveis hipóteses de conseguir uma namorada e, a dada altura, inventa um filho de dois anos e adere a um grupo de pais separados.

Esta é também a história de Marcus, um adolescente filho de pais separados que vive com a mãe problemática. É um miúdo que sofre com a violência de que é alvo na escola. Marcus e Will acabam por se conhecer por intermédio de uma amiga da mãe de Marcus, que Will conhece nesse novo grupo a que aderiu.
E é aqui que Will começa a viver o seu primeiro drama: o drama de Fiona, a mãe de Marcus. Contra todas as suas expectativas, começa a alimentar uma ideia doentia de entrar na vida deles. Marcus, que sente a falta de um “pai” começa então a frequentar a casa de Will.
Com algum humor à mistura, entramos na cabeça destas duas personagens e observamos o meio envolvente à luz dos seus pensamentos e impressões. É muito interessante acompanhar a evolução das suas relações, bem como as mudanças em relação ao mundo que as rodeia.
Will é muito peculiar e reconhece em si uma pessoa que nada faz na vida além de ver o Countdown e andar às voltas de carro a ouvir os Nirvana. Vivia acomodado com essa ideia. Mas, quando estava na presença de pessoas que pretendia agradar, gostaria de se mostrar um pouco mais complexo e ter alguma história para contar. E isso não acontecia. Começa então a aperceber-se de que precisa de uma bóia a que se pudesse agarrar. Marcus passou a ser essa bóia.
O fim tem uma moral: há que perder algumas coisas para ganhar outras. Assim é a vida.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Polícias sem história – Francisco Moita Flores

Sinopse

Um olhar irónico sobre a vida do ponto de vista dos polícias e não só...

Teve o direito a votar e votou. O direito de comprar o carro a prestações e comprou. A adquirir casa com o juro bonificado e adquiriu. A ir ao médico e escolher se queria consulta com recibo verde e escolheu. Mas, sublimidade de todas as coisas sublimes, teve direito ao protesto e não protestou. A fazer greve e não fez. A revoltar-se contra a arrogância e preferiu o silêncio. A reagir à injustiça e quedou-se atormentado. A indignar-se contra a hipocrisia e morder a raiva até espirrar sangue. Foi solidário. Todos os domingos dava esmola a um mendigo e, ainda que por medo, nunca deixou sem gorjeta um arrumador de carros. Deus deu-lhe o nome de Ernesto. O Diabo fez dele polícia.


«Vão pensar que é embirração, mas não é. Numa história de polícias, o legislador está sempre tão presente como Jesus Cristo num catecismo para crianças. É que o legislador não conhece a Musqueira nem o bairro da Sé. Legisla num confortável gabinete, que os espíritos querem-se confortáveis e confortados. E, por amor de Deus?!, não faz sentido que a inteligência, esse produto milagroso e raro que habita togas respeitáveis, entre nos tugúrios fétidos e escuros do Casal Ventoso. Isso é coisa para polícias, brutos e malcheirosos, ordinários por nascimento e dactilógrafos de pacotilha por opção. Sejamos sérios e ponhamo-nos cada um no seu devido lugar. A justiça é um dom de deuss, polícias e criminosos, um vómito do Diabo num dia em que acordou ressacado.»

A minha opinião

Conta a história de Ernesto, polícia de profissão, homem do povo.
Desde que comecei a ler os romances de Francisco Moita Flores senti-me, desde logo, completamente agradado com a sua escrita muito própria onde mistura o humor com verdades que precisam ser ditas, faladas e postas em causa. Sem dúvida alguma é um defensor dos fracos e oprimidos, contra as injustiças de uma sociedade que nasceu torta.
Os diálogos que constrói são de soltar gargalhadas e a forma prática com que consegue misturar uma escrita popular e uma escrita que chega a ser poética confere a Moita Flores um estilo muito próprio e pessoal que me atrevo a elevar ao patamar de excelente.
Este romance é um grito de revolta contra o egoísmo e arrogância de quem manda, quem governa e conduz este barco com o nome Portugal.

Porque nos mantemos calados quando deveriamos falar, porque nos rimos quando nos apetecia chorar, porque não ajudamos quando deveriamos ajudar. A cobardia em que vivemos destrói a nossa vontade de sonhar.

“A Justiça é um dom dos deuses, polícias e criminosos um vómito do Diabo num dia em que acordou ressacado”.



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