sábado, 31 de outubro de 2009

Caim - José Saramago

Sinopse

Quem diabo é este Deus que, para enaltecer Abel, despreza Caim?
Se em
O Evangelho Segundo Cristo José Saramago nos deu a sua visão do Novo Testamento, em Caim regressa aos primeiros livros da Bíblia. Num itinerário heterodoxo, percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha pela mão dos principais protagonistas do Antigo Testamento, imprimindo ao texto o humor refinado que caracteriza a sua obra.

Caim revela o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: a capacidade de fazer nova uma história que se conhece do princípio ao fim. Um relato irónico e mordaz no qual o leitor assiste a uma guerra secular, e de certa forma, involuntária, entre o criador e a sua criatura.

A minha opinião

Trata-se de uma fábula humana, um livro de ficção, no qual Caim e também Deus são os protagonistas principais, embora outras personagens da bíblia tenham o seu papel em cada fase do romance.
O livro começa com Adão e Eva, pais de Caim, expulsos do paraíso devido a «esse irritante pedaço de maçã que não sobe nem desce». O narrador afirma que Deus poderia ter evitado tudo isto. «(...)Brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não queria que lhe comessem o tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio(...)».
Caim é introduzido na história e é relatado o episódio no qual ele e o seu irmão Abel fazem oferendas ao Senhor e a de Caim foi rejeitada. Abel escarnece do irmão e este mata-o. É então que Deus lhe aparece e ambos se confrontam, pois Caim afirma o Senhor poderia ter evitado esta situação. As discussões entre ambos, nas quais Caim lhe faz frente, irão pautar todo o romance. Nesta primeira, o Senhor reconhece parte da culpa na morte de Abel e propõe ao irmão "assassino" que este passe a andar errante e perdido pelo mundo, pondo-lhe um sinal na testa - uma mancha negra - que evitará que o matem.
Começa então a nova jornada de Caim e as primeiras pessoas com quem se depara são Abraão e o seu filho Isaac. É neste ponto que o leitor encontra a expressão que tem causado grande polémica. O narrador diz que, «além de filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida (...) traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes
Mais adiante, num âmbito mais íntimo, o protagonista toma-se de amores por Lilith, de quem tem um filho.
Quanto aos judeus, outra expressão polémica: «o senhor educou mal esta gente deste o princípio».
Ao longo do livro, Caim vai passando por vários cenários bíblicos, «sem guia michelin», nos quais as várias personagens que encontra lhe relatam histórias (que ele próprio acaba por viver) que, cada vez mais, o fazem pensar que Deus «não é de fiar», mas sim um ser mau, rancoroso, vingativo e invejoso. «(...) O nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco».
Conforme disse Pilar del Río ao Diário de Notícias «o romance de Saramago não é contra Deus. Lamento contrariar os que assim pensam. Saramago, na sua ficção, volta a escrever um ensaio sobre a cegueira, a humana cegueira que, para além de impedir a visão, impede que haja claridade no mundo, que este planeta perdido no universo seja um lugar sem luz e sem outros belos dons que nos fariam mais livres e felizes. Os homens inventaram Deus e agora parece que esperam que o mesmo Deus os salve porque, enfrentando-se entre eles e com os seus medos, não são capazes de desmontar esta rede de artifícios e dizer "já chega" de escravidão e estultícia. Sigamos então por caminhos marcados por lendas, com interpretações simbólicas ou não, mas tenhamos ao menos a decência de atribuir-nos a sua autoria: a de havermos criado a divindade e toda a dor e sacrifício que os deuses supostamente impuseram ao mundo. À imagem e semelhança do ser humano.»

Eu adorei este livro e, talvez por não ser uma pessoa de convicções religiosas, encaro-o apenas como aquilo que ele é: um romance de ficção.

Excertos

«O caminho do engano nasce estreito, mas sempre encontrará quem esteja disposto a alargá-lo, digamos que o engano, repetindo a voz popular, é como o comer e o coçar, a questão é começar.»

«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.»

«Às mulheres, de um lado lhes chove, do outro lhes faz vento.»

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A sombra do que fomos - Luis Sepúlveda

Sinopse

Luis Sepúlveda regressa ao romance com uma grande homenagem ao idealismo dos perdedores.

Num velho armazém de um bairro popular de Santiago do Chile, três sexagenários esperam impacientes pela chegada de um quarto homem. Cacho Salinas, Lolo Garmendia e Lucho Arencibia, antigos militantes de esquerda derrotados pelo golpe de estado de Pinochet e condenados ao exílio, voltam a reunir-se trinta e cinco anos depois, convocados por Pedro Nolasco, um antigo camarada sob cujas ordens vão executar uma arrojada acção revolucionária. Mas quando Nolasco se dirige para o local do encontro é vítima de um golpe cego do destino e morre atingido por um gira-discos que insolitamente é lançado por uma janela, na sequência de uma desavença conjugal...

Prémio Primavera de Romance 2009, A Sombra do que Fomos é um virtuoso exercício literário posto ao serviço de uma história carregada de memórias do exílio, de sonhos desfeitos e de ideais destruídos. Um romance escrito com o coração e o estômago, que comove o leitor, lhe arranca sorrisos e até gargalhadas, levando-o no fim a uma reflexão profunda sobre a vida.

A minha opinião


O livro começa bem: minutos após terem assaltado um banco (o primeiro assalto a um banco na História do Chile), os infractores passam num talho e compram 2 kg de chouriço de sangue. O leitor, desde as primeiras páginas, é confrontado com momentos e conversas com muito humor. E foi precisamente isso que mais me cativou neste livro, a minha estreia com o Luis Sepúlveda.
Três homens recordam o passado, projectando a sombra do que foram, que dá título ao livro, enquanto esperam um quarto homem, que nunca chegará porque, quando ia ao seu encontro, foi morto acidentalmente por um gira-discos atirado de uma janela.
Para mim, este pequeno livro só peca pelas demasiadas referências históricas. Embora sinta que são necessárias para uma melhor compreensão e enquadramento dos factos, estas constantes "explicações" desviaram-me um pouco do enredo principal.

Citação

«Nunca confies na memória porque está sempre do nosso lado: suaviza a atrocidade, dulcifica a amargura, põe luz onde só houve sombras. A memória tende sempre à ficção.»
in pág. 156

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A Cor Púrpura - Alice Walker

Sinopse

Através das cartas que escrevem uma à outra, duas irmãs negras americanas falam das suas vivências pessoais, dos seus dramas, mas também das suas alegrias, na época que separou as duas guerras mundiais.
Obra vigorosa - que levou alguns críticos a comparar Alice Walker com Faulkner - este romance valeu à autora, negra também ela, os dois prémios máximos da literatura norte-americana de ficção em 1983: o Pulitzer e o American Book Award.
E deste romance fez Steven Spielberg um filme admirável.

A minha opinião

Celie é uma negra sem estudos que vive no meio rural do sul dos Estados Unidos com um homem que pensa ser seu pai (e que a violenta) e com a sua querida irmã Nettie.
O seu suposto pai obriga-a a casar-se com um outro homem violento a quem ela trata por Sr.____.
Celie é então obrigada a separar-se da sua irmã e dos seus dois filhos, fruto das consequentes violações do pai.
Isola-se e começa a escrever cartas onde conta os seus pensamentos e o seu dia-a-dia, começando-as todas por "Meus Deus".
Um dia a amante do marido, Shug Avery, vai viver para a sua casa e Celie apaixona-se por ela. Nasce então uma amizade entre as duas, e a protagonista aprende uma outra perspectiva de vida, o significado da beleza, do conforto, do desejo, do amor. Celie adquire amor-próprio e força para perdoar.
Entretanto, as suas cartas passam também a ser dirigidas à sua irmã, após a descoberta de que o seu marido lhe escondera a correspondência recebida de Nettie durante anos a fio.
Achei a história muito interessante e gostei da forma como as cartas estavam escritas: com erros como se fosse mesmo uma pessoa com poucos estudos a explicar tudo com grande simplicidade.
Gostei menos das cartas de Nettie (que era missionária em África) porque, quanto a mim, eram demasiado longas e afastavam-se um pouco da principal história do livro.

Steven Spielberg realizou um filme a partir desta história. No papel de Celia, Whoopi Golberg venceu o Globo de Ouro para Melhor Actriz e uma nomeação para o Oscar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Os anagramas de Varsóvia - Richard Zimler

Sinopse

Um romance policial arrepiante e soberbamente escrito passado no gueto judaico de Varsóvia. Narrado por um homem que por todas as razões devia estar morto e que pode estar a mentir sobre a sua identidade…
No Outono de 1940, os nazis encerraram quatrocentos mil judeus numa pequena área da capital da Polónia, criando uma ilha urbana cortada do mundo exterior. Erik Cohen, um velho psiquiatra, é forçado a mudar-se para um minúsculo apartamento com a sobrinha e o seu adorado sobrinho-neto de nove anos, Adam. Num dia de frio cortante, Adam desaparece. Na manhã seguinte, o seu corpo é descoberto na vedação de arame farpado que rodeia o gueto. Uma das pernas do rapaz foi cortada e um pequeno pedaço de cordel deixado na sua boca. Por que razão terá o cadáver sido profanado?
Erik luta contra a sua raiva avassaladora e o seu desespero jurando descobrir o assassino do sobrinho para vingar a sua morte. Um amigo de infância, Izzy, cuja coragem e sentido de humor impedem Erik de perder a confiança, junta-se-lhe nessa busca perigosa e desesperada.
Em breve outro cadáver aparece - desta vez o de uma rapariga, a quem foi cortada uma das mãos. As provas começam a apontar para um traidor judeu que atrai crianças para a morte.
Neste thriller histórico profundamente comovente e sombrio, Erik e Izzy levam o leitor até aos recantos mais proibidos de Varsóvia e aos mais heróicos recantos do coração humano.

A minha opinião

É um livro bastante denso, sobretudo pela tristeza/revolta que provoca ao lê-lo.
Transmitiu-me com demasiada dureza a realidade da vida num gueto e, mais tarde, num campo de concentração. E, se o primeiro é uma verdadeira prisão, o segundo é incomportavelmente desumano.
Várias vezes fechei o livro devido às emoções que me provocava, voltando a pegar nele mais tarde e pegando em livros "mais leves" pelo meio.
Acho que está muito bem escrito e adorei. Contudo, considerando-me uma pessoa sensível, por vezes ficava verdeiramente aflita com os acontecimentos, embora mais enriquecida com os novos conhecimentos adquiridos.
A dada altura, mais perto do fim, as revelações são surpreendentes. Mas quando tudo parece que está a ficar bem, o pior acontece.
Este livro fez-me pensar na pessoa em que nos podemos transformar, quanto tudo à nossa volta se destrói e os nossos entes mais queridos morrem. Viver sem esperança transforma-nos em seres frios, que vivem em função de um sentimento de vingança que tem que ser satisfeito custe o que custar. Para a personagem principal, a necessidade de justiça-pelas-próprias-mãos era tão importante, que o frio, a fome, a imundice, ocuparam o segundo plano.
Quando terminei a última página e fechei o livro pensei: "Uff... Que sorte não ter vivido nesta época... No gueto não se vivia, sobrevivia-se..."
Um livro obrigatório quer pela forma como a história está urdida, quer pela realidade transmitida.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A Sombra da Águia - Arturo Pérez-Reverte

Sinopse

A Sombra da Águia, que Arturo Pérez-Reverte publicou em 1993 nas páginas do El País sob a forma de folhetim, e que se encontrava até hoje inédita em Portugal, é, na sua aparente simplicidade, uma das obras que melhor espelha o virtuosismo literário do seu autor, o seu sentido de humor e a sua fidelidade aos grandes temas do ser humano, como a guerra, o heroísmo anónimo, a noção de Pátria.
A história é baseada num acontecimento real: em 1812, durante a Campanha da Rússia, num combate adverso para as tropas napoleónicas, um batalhão de antigos prisioneiros espanhóis, alistados à força no exército francês, tenta desertar, passando-se para os russos. Interpretando erroneamente o movimento, o Imperador encara-o como um acto de heroísmo e envia em seu auxílio uma carga de cavalaria que terá consequências imprevisíveis.
Ao mesmo tempo divertido e trágico,
A Sombra da Águia revela-nos uma visão mordaz e descarnada da guerra e da condição humana. Uma pequena pérola com a assinatura do mais importante escritor espanhol da actualidade.

Críticas de imprensa

Não é um romance de guerra puro nem pretende ser. Mas a reflexão é tão inteira e honesta como o riso que nos vai sendo arrancado, de forma pacífica sem recurso a artilharia pesada.
Revista Time Out

A minha opinião

Este livro fez-me dar umas boas gargalhadas.
A sinopse é muito clara quanto ao conteúdo do livro. Napoleão, ou melhor, "le petit cabrão" ou "anão maldito", viu o Segundo Batalhão do 326 da Infantaria de Linha "naqueles milheirais cheios de mortos como se alguém tivesse estado a passear por ali com uma máquina de picar carne" em direcção às tropas russas. Sucede que eles estavam a desertar e o Imperador interpretou a movimentação como um acto heróico.
Por seu turno, os "Ivan" ou os "artilheiros ruskis" (ou seja, as tropas russas) "vêem que pela ladeira sobem quatrocentos energúmenos eriçados de baionetas e gritando como possessos".
É a partir daqui que se desenrola um episódio triste, mas desenvolvido numa escrita hilariante.
Napoleão nunca é chamado pelo nome, mas sim pelos nomes referidos e outras expressões pouco abonatórias.
Com ele surgem outras personagens que nos fazem rir: o general Labraguette que "gaguejava sempre sob o fogo e nos bordéis, porque na Campanha de Itália tinha sido apanhado por um bombardeamento austríaco numa casa de putas"; o coronel Alix que "tinha fama de fiteiro e gabarola" e "todos os marechais teriam gostado de o ver partir uma perna ao desmontar [o cavalo]"; Murat com os seus "caracóis de madame Lulu e com menos miolo que um mosquito"; ou ainda, entre outros, o sargento Peláez, um tal que foi morto por uma granada que o "transformou em miudezas sortidas", em "charcutaria fresca".
Em suma, passei bons momentos de leitura na companhia deste livro e transcrevo uma fala do petit cabrão sobre os espanhóis: "Aqueles filhos da puta já são difíceis como aliados, de modo que quando souberem que lhes estamos a fuzilar os compatriotas para que aquele tipo, o Goya, os pinte a óleo, imagine o caldinho que nos podem arranjar."
Sem sombra de dúvida que recomendo vivamente esta Sombra da Águia!!!

Ler o primeiro capítulo do livro aqui.

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