terça-feira, 23 de março de 2010

O Evangelho do Enforcado - David Soares

Sinopse

Nuno Gonçalves, nascido com um dom quase sobrenatural para a pintura, desvia-se dos ensinamentos do mestre flamengo Jan Van Eyck quando perigosas obsessões tomam conta de si. Ao mesmo tempo, na sequência de uma cruzada falhada contra a cidade de Tânger, o Infante D. Henrique deixa para trás o seu irmão D. Fernando, um acto polémico que dividirá a nobreza e inspirará o regente D. Pedro a conceber uma obra única. E que melhor artista para a pintar que Nuno Gonçalves, estrela emergente no círculo artístico da corte? Mas o pintor louco tem outras intenções, e o quadro que sairá das suas mãos manchadas de sangue irá mudar o futuro de Portugal. Entretecendo História e fantasia, O Evangelho do Enforcado é um romance fantástico sobre a mais enigmática obra de arte portuguesa: os Painéis de São Vicente. É, também, um retrato pungente da cobiça pelo poder e da vida em Lisboa no final da Idade Média. Pleno de descrições vívidas como pinturas, torna-se numa viagem poderosa ao luminoso mundo da arte e aos tenebrosos abismos da alienação, servida por uma riquíssima galeria de personagens.

A minha opinião

Corria o ano de 1395 quando Briolanda deu à luz um filho. A essa criança, que nasceu com uma característica deveras estranha (que terão que ler para saber o que é), deram o nome de Nuno Gonçalves.
Assim começa a história de um estranho bebé, que descobre a vocação para a pintura aos 9 anos e, em adulto, se torna no Pintor da Cidade de Lisboa.
Se, por um lado, Nuno tem um dom da arte, por outro, gosta da morte e do seu cheiro e cedo começa a coleccionar cadáveres de animais para desenhar. A sua obsessão é a necrofilia e as tendências assassinas virão a caracterizá-lo na vida adulta.
Nesta obra, os cheiros e os sabores são descritos de tal forma que quase consegui senti-los. Algumas cenas mais repugnantes e mórbidas protagonizadas por Nuno também me conseguiram causar momentos de verdadeira repulsa e nojo, dado o pormenor da descrição. As situações relacionadas com a homossexualidade estão também magnificamente descritas.
A capacidade do autor descrever a realidade é tal que parece que estamos presentes nos vários cenários a ver tudo acontecer.
A par da vida do pintor, temos a época que é vivida. D. João é rei e prepara a expedição a Ceuta. D. Filipa, sua mulher, morre devido à peste. D. Fernando, filho de ambos, tem visões. D. Duarte é o futuro rei.
É nessa altura que Nuno conhece o mestre Jan Van Eyck e aprende com ele os segredos da pintura.
Anos mais tarde, após a morte de D. Fernando em Tânger, o irmão D. Pedro, regedor de Portugal (por morte de D. Duarte), quer deixar uma marca positiva na História do país, homenagiando o irmão morto em África pelos mouros. Assim, imagina uma pintura grandiosa, onde estivesse representado não só D. Fernando, como o seu irmão gémeo falecido, Santos de que era devoto, família real, membros do clero e outras pessoas. Nuno Gonçalves foi o pintor escolhido para levar a cabo o políptico que ficou conhecido como os Painéis de S. Vicente.
Independentemente de se gostar desta obra ou não, é francamente notório desde a primeira página que David Soares se documentou amplamente sobre os usos e costumes da época e a História de Portugal (Dinastia de Avis). Isto para além da sua escrita despertar constantemente o interesse de virar a página para saber o que acontecerá de seguida.
Quanto a mim, estamos perante um livro soberbo e muito, muito interessante. A história do pintor e a História de Portugal são-nos apresentadas de forma magistral. Os meus parabéns ao autor, não só pela narrativa que tão bem escreveu, como também pela grande pesquisa necessária à elaboração deste magnífico O Evangelho do Enforcado.

«O pintor é o homem mais solitário do mundo. Os seus filhos são nados-mortos, coisas para serem penduradas nas paredes - coisas para serem esquecidas.»

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Braço Esquerdo de Deus - Paul Hoffman

Sinopse

A sua chegada foi profetizada. Dizem que ele destruirá o mundo. Talvez o faça...

"Escutem. O Santuário dos Redentores, em Shotover Scarp, é uma mentira infame, pois lá ninguém encontra santuário e muito menos redenção."
O Santuário dos Redentores é um lugar vasto e isolado - um lugar sem alegria e esperança. A maior parte dos seus ocupantes foi levada para lá ainda em criança para servir a Única e Verdadeira Fé. Um jovem acólito ousa violar as regras e espreitar por uma janela. É um rapaz estranho e reservado, até ao dia em que abre a porta errada na altura errada e testemunha um acto tão terrível que a única solução possível é a fuga.
Mas os Redentores querem Cale a qualquer preço... não por causa do segredo que ele sabe mas por outro de que ele nem sequer desconfia.

A minha opinião

A minha opinião não é unânime: no princípio, o livro é viciante, mas, nas últimas 100 páginas, perde muito do interesse inicial e o fim (que não é bem um fim, pois existirão mais volumes) é estranho e, na minha opinião, apressado, pois «O braço esquerdo de Deus» é revelado em apenas duas páginas. A verdade é que ao longo do todo o livro não sabemos o porquê do seu título.
No Santuário dos Redentores os acólitos não têm qualquer prazer na vida: passam frio, fome e maus tratos. São sujeitos a horas diárias de orações que, devido à repetição, já não têm qualquer significado. Nem a cantilena que entoam sempre ao deitar, uma pura ameaça de morte, provoca qualquer medo.
A par disto, os Redentores preparam uma guerra contra os Antagonistas.
Thomas Cale é o jovem descrito na sinopse. Ele é astuto, inteligente e destaca-se dos demais acólitos.
Um dia entra pela porta dos aposentos do Senhor da Disciplina e assiste a uma cena horrível e arripiante. Nesse momento, certo de ter sido descoberto, vê-se obrigado a fugir do santuário com uma pessoa que, entretanto, salvou da morte e dois companheiros com quem partilhou a sua macabra descoberta e as terríveis consequências.
Nesta fase, o livro está repleto de acção, na qual a vida destes jovens está constantemente em risco e o perigo das injustiças espreita a todo o momento. É essa incerteza sobre o futuro que nos faz virar compulsivamente as páginas para saber como vão superar as adversidades na luta pela sobrevivência.
Adorei a escrita de Paul Hoffman: simples, com apontamentos de humor e, inicialmente, descrições pouco maçudas.
Mas, de facto, a última parte não alcançou as minhas expectativas. A narrativa dos episódios ligados à guerra e à violência tornou a leitura um pouco fastidiosa, deixando-me algo desiludida com a história que comecei por devorar.
A verdade é que estava empenhadíssima na leitura até ao ponto em que a vida de Cale estabilizou. Acabaram as fugas, passou a ser respeitado e admirado, surgiu o amor e o livro tornou-se somente interessante e, por vezes, monótono.
Mas, apesar da crítica, eu gostei imenso, e nunca pensei em desistir de chegar ao final. Posso afirmar que se trata de um livro perturbador, que, mesmo não estando a adorar, é impossível deixar de ler e me deixou a pensar nele, mesmo para lá da sua leitura.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Breve História dos Mortos – Kevin Brockmeier

Sinopse

Uma história mágica sobre a vida - o nosso lugar no mundo e as ligações que estabelecemos uns com os outros - e sobre um misterioso local situado além da morte. Esta é uma história de um fascinante poder e imaginação, que permanece em nós muito depois de virarmos a última página.
O tempo esgota-se para Laura Byrd. Há três semanas, ela e os seus colegas viram-se abandonados num dos mais gelados e longínquos locais da Terra. Os seus colegas partiram em busca de ajuda e agora Laura apercebe-se de que eles não irão regressar. Sozinha, prepara-se para iniciar uma viagem memorável.
Entretanto, noutra cidade, todos os dias chegam mais e mais pessoas. Cada uma delas tem uma história diferente para contar, mas as suas descrições têm algo em comum - esta foi a sua última viagem. Pois esta é a cidade dos mortos. E o segredo que liga esta cidade à viagem de Laura está escondido no coração deste extraordinário romance.
Estamos perante duas histórias que se interligam para criar uma poética e "assombrada" obra sobre o amor, a perda e o poder da memória.

Sobre o autor

Kevin Brockmeier, escritor norte-americano, nasceu em 1972 e cresceu em Little Rock, Arkansas, onde vive actualmente. Além de Breve História dos Mortos, é também autor do romance The Truth about Celia e do livro de contos Things that Fall from the Sky; assim como dos romances juvenis City of Names e Grooves: A Kind of Mystery.
Tem também publicado histórias em diversas revistas e antologias.
Entre outros, recebeu o Nelson Algren Award do Chicago Tribune, o Italo Calvino Short Fiction Award e três Prémios O. Henry – sendo um o primeiro lugar. É um dos escritores que integra a lista dos 21 nomes escolhidos para o Best of Young American Novelists da Granta, de 2007.

Críticas sobre Breve História dos Mortos

“(...) páginas soberbamente escritas (...) magnífico e irrepetível romance.”
João Seixas

A minha opinião

“O corpo era a componente material de uma pessoa. A alma era a componente imaterial. O espírito era apenas a linha que os unia.”

Assim começa o livro: os vivos são aqueles que vivem na Terra, os sasha são os chamados mortos-vivos, vivem na cidade, nem céu nem inferno e aí estão enquanto são recordados pelos vivos. Quando morre a última pessoa que conhece e recorda um antepassado, este abandona os sasha e junta-se aos zamani, os mortos.

Achei fantástica a primeira parte do livro. A explicação da cidade, onde habitam aqueles que deixaram o mundo dos vivos, a forma como as pessoas vinham a desaparecer devido ao vírus, o Pestanejo, que assolava a Terra e com consequências desastrosas a nível global, todas as descrições que são feitas pelo autor achei absolutamente brilhantes.
Com uma ficção habilmente escrita somos transportados para duas realidades paralelas. A cidade com Luka, o Velho e Minny como protagonistas de relevo e a Antártica com Laura numa luta pela sobrevivência.
Através dos protagonistas somos levados a fazer uma análise à vida, nem sempre fácil, muitas vezes bastante dura. O que fica, o que recordamos são pequenos fragmentos que nos marcam ao longo da nossa vida e podem ser um pôr de sol mágico, um beijo sentido ou simplesmente um café com torradas.

Gostei muito da forma como o autor entrelaçou as histórias. Experiências diferentes, vidas distintas vão-se cruzando e encontrando ao longo dos capítulos duma forma soberba. É simultaneamente uma análise muito profunda ao fundo do nosso ser, a turbulência e complexidade da vida e das pessoas.
O percurso que fazemos, a ideia que não temos tempo suficiente para fazer tudo o que queremos, a esperança de aproveitarmos o melhor possível e a tristeza de que ficaram coisas por fazer e dizer.

Volto a referir que as descrições são perfeitamente deliciosas, a forma como o autor escreve e descreve o desenrolar dos acontecimentos transporta-nos magicamente para o cenário criado. É, sem dúvida, um excelente livro.

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